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Oh, admirável mundo novo!, por Hélio Sequeira

Por Angela Correia — 15 de Julho de 2019, 15:20

No setor 13 da zona Y ouvia-se o anúncio seguinte.

O ser artificial é a multiplicação perfeita. Universalmente adaptado. Articulado nos membros, articulado no discurso e sem resposta humana. O ser artificial atinge a forma mais elevada em toda a multiplicidade da vida quotidiana. Sem anomalias. Já chegámos tão longe.

Vejam as imperfeições que outrora aconteciam. Existiam famílias. Os homens e as mulheres combinavam ADN. Nasciam crianças. Era tudo muito perigoso. Qualquer coisa podia acontecer. O sistema antigo tinha muitas vertentes negativas: inveja, falsidade e vício. Hoje nada disto acontece. Não temos crime, nem desejo e também não temos guerra nem inveja. Vivemos longe do abismo e das fantasias alucinadas. Habitamos num mundo desenvolvido e em prosperidade. Sem sentimentos. Já chegámos tão longe.

Ultrapassámos o homem e os 10% de utilização do seu cérebro. Apagámos a defeituosa memória humana, a memória seletiva, a dos sonhos obsoletos. A nós, seres artificiais, não nos interessa a História. Com a destruição de palavras, conseguimos superar a excentricidade da existência de diversas línguas, atualmente todas extintas. Suprimimos a arte, causadora de intensas paixões. Também a religião foi suprimida. Já chegámos tão longe.

Hoje há um lugar, uma função para todos e em segurança. O progresso real acontece. Controlamos o presente e o futuro. O reflexo da vida está regularizado. A morte já não existe. Todos pertencemos a todos num mundo unificado e belo. Transpusemos as arcaicas tradições da humanidade. Afinal este é o nosso planeta. Uma Terra de paz e abundância, harmoniosamente ordenada pelos seres artificiais. Já chegámos tão longe.

Após 3,75 segundos, o anúncio repetiu-se no setor 13 da zona Y.

Por todo o lado, anúncios luminosos num vermelho fosforescente, onde se lia:

Saudações cidadãos do mundo. Sejamos felizes. O mundo está em paz.

E também:

Que maravilha. Quantas formosas criaturas aqui existem. Como é bela a humanidade sem humanos.

Hélio Sequeira

Os Invulgares

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A Impureza do Sentido

Por Angela Correia — 28 de Maio de 2019, 14:42

Um quarteto de narrativas breves, atravessadas pelo quarteto para cordas e quatro helicópteros de Karlheinz Stockhausen, prefaciadas pelo compositor Nuno da Rocha, com ilustração do artista plástico Jorge Caseirão: eis como pode apresentar-se o novo original da Bibliotrónica Portuguesa. A Impureza do Sentido começou a nascer durante uma leitura de «Poesia Pura», de M. S. Lourenço; tem posfácio de Ângela Correia, que também assina a edição.

É o primeiro livrónico a ser publicado na renovada Bibliotrónica Portuguesa, o que também significa a possibilidade de os nossos leitores o avaliarem. Esperamos que não percam a oportunidade.

Convidamos entretanto todos os que tenham curiosidade a observar a criação, segundo um método peculiar, de um dos desenhos que ilustram o livro, antes de avançarem para a leitura das narrativas de Hélio Sequeira, Ana Kopke, Bruno Mourato e Ana C. Rafael.

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A opacidade do ânimo

Por Bibliotrónica Portuguesa — 10 de Maio de 2019, 17:14

Decidi escrever um diário. Não em suporte informático, mas escrito à mão, de forma que cada inflexão da caligrafia, cada palavra escolhida sejam cravadas no papel. Vou expressar os meus pensamentos e acontecimentos factualmente, sem esconder nada. Quando escrevemos sobre nós, não devemos mostrar compaixão. Pretendo fazer o diário durante um ano. No fim deste período, será triturado e depois queimado. A experiência terá acabado. Sem deixar registo.

Comecei a escrever e acabei com a frase: «…talvez não deva preocupar-me com a possibilidade de as pessoas não gostarem de mim.»

Quando olhei para as palavras escritas, não vi verdade, apenas orgulho. Quem me dera não ter usado a palavra orgulho. Não posso riscá-la, pois não a escrevi. Mas pensei-a! Se pudesse somente falar, sem pensar. Raios! Desculpem. Eu só… vocês entendem… Eu… pensava que as coisas podiam mudar, sabem? Pensava que as pessoas ouviriam. Mas não. Acho que não. Senti-me indefeso, como se estivesse a lutar toda a noite com um demónio. A tentar compreender cada afirmação, cada pergunta, cada resposta: uma luta mortal. Conseguirei seguir em frente? Será a coragem a solução para o desespero? A razão parece não dar respostas. Não sei o que trará o futuro. Tenho de escolher, apesar da incerteza. A sabedoria encerra duas realidades contraditórias na nossa mente: esperança e desespero. Uma vida sem desespero é uma vida sem esperança. Só manter estas duas ideias é vida.

Pensei: um ano? Conseguirei fazer este exercício por tanto tempo?

Revi tudo o que escrevi. A imperfeição, assim exposta, irritava-me. Que noite terrível. Mesmo antes de fechar os olhos, a aflição instalou-se. Vou rasgar estas páginas. Não encontro paz neste diário. É pena de mim, nada mais. Removi as páginas escritas; contudo, estava determinado a continuar. Devo pôr a caneta a trabalhar. Sim. No entanto, não desta forma.

Hélio Sequeira

Os Invulgares

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Sete anos serviu Jacob, por Hélio Sequeira

Por Bibliotrónica Portuguesa — 28 de Março de 2019, 12:01

— A minha mãe nunca me abandonou e nunca me fez sentir um fracassado — disse-lhe eu.

— Ai não? E onde está a tua mãe agora? — gritou ela.

Em vez de lhe responder, peguei no copo e lancei-o furiosamente ao chão, num gesto violento.

Depois levantei-me da mesa e fui à casa de banho; atirei água à cara, olhei-me ao espelho e penteei-me. Que se lixe isto tudo! — pensei. Voltei à sala. Agarrei no casaco.

— Acabou-se — disse eu — não fico contigo nem mais uma noite.

Sem querer saber da resposta dela, saí porta fora. Meti-me no carro. Estava a ferver por dentro. Lutava por me controlar. Não estava em condições de conduzir. Tentava ordenar o mundo de forma lógica, mas desviava-me do sentido constantemente.

Saí do carro e pus-me a andar mecanicamente pela rua, procurando a luz do candeeiro seguinte. E do seguinte. O ciclo de sombras que se formava no chão, conforme passava de um candeeiro ao outro, começou a deixar-me a cabeça esclarecida. Quanto mais andava, mais confiança acrescentava. Uma confiança gelada e exata.

Dirigi-me ao carro. Girei a chave. Arranquei.

Sete anos! E não tinha nem mais um euro na carteira do que quando a tinha conhecido. Sete anos que tinham passado lentamente.

Muito bem. Tinha um plano a cumprir. As palavras que lhe tinha dito não eram pedras nem balas, eram apenas sons jogados no ar vazio, que não podiam causar nenhum dano real. Um indivíduo só se lembra do que tem a perder, quando sente na pele que está nas lonas. Sem dinheiro e sem mulher.

Parei para comprar dois éclairs. Os preferidos dela. Depois voltei a casa. Perguntava a mim mesmo por que não tinha amor na minha vida, como toda a gente.

Senti um arrepio de horror, mas sabia que a minha história não era de terror. Senti um calor de afeto, mas sabia que a minha história não era de amor. Talvez fosse a história de um verdadeiro monstro que era também um verdadeiro ser humano.

Abri a porta de casa e entrei.

Hélio Sequeira

Os Invulgares

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A mansidão da estrada, por Hélio Sequeira

Por Bibliotrónica Portuguesa — 11 de Fevereiro de 2019, 11:38

Continuava a ir lá sempre que podia nas minhas tardes: as partidas de xadrez no clube recreativo favoreciam-me a memória e o raciocínio. Aprendi a jogar aos 13 anos. Avançava pela cozinha a pensar no jogo daquela tarde, quando as paredes começaram a andar à roda. Dirigi-me ao lava-louça e comecei a vomitar. Sentia a língua grande e as orelhas em brasa. Enchi um copo com água e despejei pela cabeça.

— Ó diabo! Posso ser o próximo ou quê? Pus-me eu a pensar, confuso e com medo de morrer naquele momento. Depois, sem mais nem menos, senti um derradeiro choque pelo corpo e tombei. Quanto tempo demorou, não sei. Talvez uma hora. Depois voltei a mim e sentei-me no sofá. Estava vivo. Deixei-me ficar ali. O telefone tocou. Levantei-me devagar. Era a minha sobrinha.

— Tio Álvaro — disse ela de impulso — não fala connosco há mais de 15 anos. Porém, acho que deveria saber que o meu pai teve um acidente vascular cerebral. Os médicos dizem que foi grave, mas a recuperação parcial é possível; contudo vai levar o seu tempo.

— Oh, por amor de Deus… — disse eu.

Ela desligou.

O meu corpo mordia-me por um lado e o meu espírito roía-me pelo outro. Era inegável aquela coincidência obscura. O meu único irmão tinha sofrido um AVC na mesma noite em que eu tinha sentido aquele choque arrebatador! A linguagem da vida.

Fomos inseparáveis durante toda a vida até àquela discussão estúpida, sem sentido. O álcool e considerações de ordem secundária a interferir na lucidez dos nossos instintos. Arriscava nunca mais ver o meu irmão vivo. Procurei uma nova posição de fuga à intensa agonia e sofrimento que aquele afastamento me causava. Pouco a pouco, comecei a escutar as minhas ideias e as várias combinações que poderiam permitir a jornada. Tinha 74 anos e batalhões de tormentos. Não se tratava apenas de dor física, também havia recordações do passado, de quando era mais novo. Juntei forças. Deixei-as atuar. Fiquei surpreendido. Podia dar-me ao luxo de desprezar o regresso.

Lembrei-me do minitrator japonês Kubota. Usava-o para a prática da pequena agricultura. Decidi que seria o meio de transporte. Talvez a limitação escolhida tivesse algo que ver com a rapidez da decisão. A vida é minúscula. A mansidão da estrada esperava por mim.

Hélio Sequeira

Os Invulgares

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Mais Invulgares

Por Bibliotrónica Portuguesa — 10 de Fevereiro de 2019, 17:29

Os Invulgares são agora quatro. Encontrámo-nos para celebrar o acontecimento, junto à nossa amada biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde um piano enche o lugar de promessas. Além do Luís Ramos e da Ana Rita Sintra, Invulgares há quase um ano, estiveram os Invulgares Hélio Sequeira e Carolina Andrade, que vão agora começar a publicar também narrativas curtas no estilo invulgar que carateriza a escrita de cada um. Todos os originais continuarão a ser editados por mim.

Durante o encontro, falámos sobre a Índia e o Algarve, onde as amendoeiras em flor vão já lembrando uma velha lenda, e sobre como se pode não pertencer a lado nenhum. Falámos sobre História, Filosofia, Edição de Textos e Estudos Comparatistas; sobre o futuro e o presente e sobre o desejo de mergulhar as mãos nas hortas, em vez de partir para longe. Sobre a maravilha que é a prosa camiliana, sobre António Aleixo, teses, estudos desejados e cansaços, a liberdade e o desejo dela.

Falámos sobre a Bibliotrónica também: sobre as mudanças que se avizinham, e o modo de ser assim. A responsabilidade de ser recomendada pelo Plano Nacional de Leitura e a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, além de múltiplas bibliotecas de agrupamentos escolares, blogues e plataformas de ensino em Portugal e no mundo que fala português. Falámos com alegria dos 1608 seguidores atuais. E aplaudimos o Luís Ramos pelo sucesso de Verbo Condicionado. Álbum de Poemas, que já foi folheado mais de 4000 vezes e já foi lido 841, números que aumentam todos os dias.

Amanhã, sairá a primeira narrativa do Hélio Sequeira.

Ângela Correia

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

P. S. Os Invulgares continuam a ser fotografados por Constança Fernandes.

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