Noticias em eLiteracias

🔒
✇ Bibliotrónica Portuguesa

De passagem, por Carolina Andrade

Por Bibliotrónica Portuguesa — 23 de Fevereiro de 2019, 22:25

Vinte e um de janeiro. Acordo com frio e tento puxar o lençol para tapar as costas expostas. Fico com o pé de fora. O lençol está todo enrolado entre as minhas pernas. Acabo por despertar completamente na tentativa de me cobrir. Olho pela janela ainda com a cabeça enterrada na almofada e, tal como em tela de cinema, corre a fita de uma paisagem que não me é familiar. Faço 21 anos e estou, há mais de um dia, dentro do expresso que faz a ligação entre Jaipur e Calcutá, Índia. Por mais remota que a paisagem seja, nunca passa muito tempo sem que se vislumbre alguém no horizonte, quer seja um grupo de mulheres carregando elegantemente potes e outros volumes sobre a cabeça, quer sejam as recorrentes figuras verticais que, de costas voltadas para o mundo, regam os campos e urinam para os esgotos correndo, como rios, a céu aberto.

Há silêncio no vagão. Talvez ainda estejam todos a dormir. Ou todos acordados sem quererem mexer-se. Aproveito o momento de tréguas matinais, antes de o caos diurno começar, e tento incitar a sensação própria dos dias de aniversário. Estranhamente, não a encontro. Pode ser que a excitação da festa seja, afinal, composta de bolos e canções e postais e velas por apagar. Faço anos, mas pouco importa, por estar em terra de ninguém. Por estar de passagem, estando rodeada de pessoas que nem sabem pronunciar o meu nome. Começo a sentir um movimento no beliche de cima, ao mesmo tempo que o som de bocejos vem do lado oposto do compartimento. Pouco a pouco, os vizinhos de carruagem começam a correr as cortinas grossas, e a luz ocupa o espaço apertado. No chão, acumula-se cada vez mais sujidade: cabelos e copos de café amassados. Mas não se está mal: todo o viajante aprende que critério de higiene é coisa mutável.

Quis o destino colocar-nos no meio de uma família numerosa, conceito que, num país com com mais de um bilião, ganha outros contornos. Mulheres de um lado, crianças no meio, homens do outro. Quando aqui cheguei de bilhete na mão, e lhes fiz notar com gestos esforçados que as malas deles estavam a ocupar o meu lugar, responderam-me sorridentes: wait, wait. E eis que chega um rapazinho com a minha idade e uma expressão orgulhosa do seu inglês. Negociámos o meu lugar. Primeira proposta: que trocasse de carruagem. Recusei. E se passar para o compartimento da ponta? Ponderei. Tudo bem, mas não quero ficar no beliche de cima. Como queira, menina. E se ficar na cama de baixo, à janela? Assim foi.

De tempos a tempos, uma das mulheres trazia um par de pratos de papel com comida. A primeira refeição era leve: uma mistura de amêndoas, caju, pistachio e uva-passa. Depois o idli, um pãozinho descorado, leve e azedo, feito de farinha de arroz e lentilha, que ensopavam ora num molho branco, ora num vermelho.  Antes do meio-dia, chegavam as samosas e, ao almoço, em quantidades generosas, arroz amarelado e vegetais fritos que me traziam à memória os nossos peixinhos da horta. Em vez de garfos, o roti, aquilo a que chamamos chapati, para juntar montinhos de comida que levavam à boca em movimentos rápidos. Espantavam-me todas as preparações que traziam. Imaginava as mulheres a trabalhar na cozinha até altas horas da noite na véspera. As mãos a estender e a enrolar a massa, a pôr e retirar com rapidez o papadam antes que se queime; os olhos habituados às malaguetas que fermentam morosamente em frascos fechados.

Desejei estar na cozinha saturada de cheiro a óleo e especiarias agressivas, e ter acesso a todos os segredos do corpus de tal herança matriarcal. Para sobremesa, fizeram circular naquela manhã pratinhos menores com bolos secos; ligaram à tomada um fervedor elétrico e beberam chá. Ofereceram-me um bolinho que aceitei com timidez. Ali estava. Desprovido de recheio achocolatado e de chantilly, ainda assim: um bolo de aniversário.

Carolina Andrade

Os Invulgares

❌