Mais conhecido pelo livro Diário de uma Criada de Quarto, Octave Mirbeau foi autor de muitos outros títulos, de variados géneros: ensaio, romance, teatro, conto. Em 2017, comemorou-se o centenário da morte do escritor francês, nascido em 1848.
Conforme explicam os autores da reedição que a Bibliotrónica Portuguesa acaba de publicar, «O Padre Júlio acompanha a vida de um homem que, ao decidir enveredar pela vida clerical, enfrenta os enormes problemas, sobretudo psicológicos, que esta opção lhe provoca, principalmente no âmbito da sexualidade.»
Sendo o acesso à obra de Mirbeau em língua portuguesa relativamente limitado, a publicação de O Padre Júlio é um contributo para um melhor conhecimento do escritor, de que os autores da reedição e a Bibliotrónica Portuguesa se orgulham.
Devemos um agradecimento sentido a J. A. Marcos Serra, que se encarregou da revisão da reedição.
Aproveitamos para desejar a todos os leitores da Bibliotrónica Portuguesa um feliz ano de 2019.
São 17 h 11 min. É quase noite. E voltámos ao mesmo. Sempre o mesmo. Acordamos ainda de noite. Queremos a noite. Queremos o dia. Ah… Não é isto e isto não pode continuar. Eu tenho de sair daqui. Eu quero ser professor ou empresário. E quero ter muito dinheiro e uma mulher bonita. Quero comer bem e vestir bem. Quero ter uma vida que me diga alguma coisa. Uma vida em que eu me sinta realizado. Isto assim não pode continuar. Que se queimem essas árvores! Montamos uma carvoíça! Este cerro… abaixo o cerro! Montamos uma empresa de construção civil! Vamos para a cidade! Vamos embora daqui! Vamos fazer alguma coisa! Vamos embora, pai! Vamos arranjar uma vida!
Uma vida? Que vida? Que esperas tu que seja diferente na cidade? Esperas não morrer? Encontrar a felicidade? Onde? Uma vida? Um sentido? Que amanhã seja melhor? O que é que vai ser melhor?
A vida é o estar sendo das coisas. O resto é uma negação da morte. Que o paraíso celeste é uma farsa, descobriste sem te o dizer. Mas que o paraíso terrestre também o é, ainda tu o não sabes. Amor? Dinheiro? Fama? Prestígio? Ostentação? Luxo?
Filho, há duas formas de viver: o saber viver e o querer viver. O querer viver é o aproveitar de todas as oportunidades da vida com o intuito de superar a antítese entre a vida e a morte. Aproveitando a vida, esperamos que ela nos impulsione para a dimensão superior da eternidade. Pelo contrário, saber viver é conhecer o que é a vida essencialmente, e comungar da própria vida. Se quiseres, fica. Se quiseres, parte. Antes, quando nós sabíamos que a verdade era una, tínhamos o dever de castigar aqueles que criam na falsidade. Agora, que tudo é relativo, é a ti que cabe a decisão…
Luís Ramos
Os Invulgares são agora quatro. Encontrámo-nos para celebrar o acontecimento, junto à nossa amada biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde um piano enche o lugar de promessas. Além do Luís Ramos e da Ana Rita Sintra, Invulgares há quase um ano, estiveram os Invulgares Hélio Sequeira e Carolina Andrade, que vão agora começar a publicar também narrativas curtas no estilo invulgar que carateriza a escrita de cada um. Todos os originais continuarão a ser editados por mim.
Durante o encontro, falámos sobre a Índia e o Algarve, onde as amendoeiras em flor vão já lembrando uma velha lenda, e sobre como se pode não pertencer a lado nenhum. Falámos sobre História, Filosofia, Edição de Textos e Estudos Comparatistas; sobre o futuro e o presente e sobre o desejo de mergulhar as mãos nas hortas, em vez de partir para longe. Sobre a maravilha que é a prosa camiliana, sobre António Aleixo, teses, estudos desejados e cansaços, a liberdade e o desejo dela.
Falámos sobre a Bibliotrónica também: sobre as mudanças que se avizinham, e o modo de ser assim. A responsabilidade de ser recomendada pelo Plano Nacional de Leitura e a Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, além de múltiplas bibliotecas de agrupamentos escolares, blogues e plataformas de ensino em Portugal e no mundo que fala português. Falámos com alegria dos 1608 seguidores atuais. E aplaudimos o Luís Ramos pelo sucesso de Verbo Condicionado. Álbum de Poemas, que já foi folheado mais de 4000 vezes e já foi lido 841, números que aumentam todos os dias.
Amanhã, sairá a primeira narrativa do Hélio Sequeira.
Ângela Correia
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
P. S. Os Invulgares continuam a ser fotografados por Constança Fernandes.
Continuava a ir lá sempre que podia nas minhas tardes: as partidas de xadrez no clube recreativo favoreciam-me a memória e o raciocínio. Aprendi a jogar aos 13 anos. Avançava pela cozinha a pensar no jogo daquela tarde, quando as paredes começaram a andar à roda. Dirigi-me ao lava-louça e comecei a vomitar. Sentia a língua grande e as orelhas em brasa. Enchi um copo com água e despejei pela cabeça.
— Ó diabo! Posso ser o próximo ou quê? Pus-me eu a pensar, confuso e com medo de morrer naquele momento. Depois, sem mais nem menos, senti um derradeiro choque pelo corpo e tombei. Quanto tempo demorou, não sei. Talvez uma hora. Depois voltei a mim e sentei-me no sofá. Estava vivo. Deixei-me ficar ali. O telefone tocou. Levantei-me devagar. Era a minha sobrinha.
— Tio Álvaro — disse ela de impulso — não fala connosco há mais de 15 anos. Porém, acho que deveria saber que o meu pai teve um acidente vascular cerebral. Os médicos dizem que foi grave, mas a recuperação parcial é possível; contudo vai levar o seu tempo.
— Oh, por amor de Deus… — disse eu.
Ela desligou.
O meu corpo mordia-me por um lado e o meu espírito roía-me pelo outro. Era inegável aquela coincidência obscura. O meu único irmão tinha sofrido um AVC na mesma noite em que eu tinha sentido aquele choque arrebatador! A linguagem da vida.
Fomos inseparáveis durante toda a vida até àquela discussão estúpida, sem sentido. O álcool e considerações de ordem secundária a interferir na lucidez dos nossos instintos. Arriscava nunca mais ver o meu irmão vivo. Procurei uma nova posição de fuga à intensa agonia e sofrimento que aquele afastamento me causava. Pouco a pouco, comecei a escutar as minhas ideias e as várias combinações que poderiam permitir a jornada. Tinha 74 anos e batalhões de tormentos. Não se tratava apenas de dor física, também havia recordações do passado, de quando era mais novo. Juntei forças. Deixei-as atuar. Fiquei surpreendido. Podia dar-me ao luxo de desprezar o regresso.
Lembrei-me do minitrator japonês Kubota. Usava-o para a prática da pequena agricultura. Decidi que seria o meio de transporte. Talvez a limitação escolhida tivesse algo que ver com a rapidez da decisão. A vida é minúscula. A mansidão da estrada esperava por mim.
Hélio Sequeira
Vinte e um de janeiro. Acordo com frio e tento puxar o lençol para tapar as costas expostas. Fico com o pé de fora. O lençol está todo enrolado entre as minhas pernas. Acabo por despertar completamente na tentativa de me cobrir. Olho pela janela ainda com a cabeça enterrada na almofada e, tal como em tela de cinema, corre a fita de uma paisagem que não me é familiar. Faço 21 anos e estou, há mais de um dia, dentro do expresso que faz a ligação entre Jaipur e Calcutá, Índia. Por mais remota que a paisagem seja, nunca passa muito tempo sem que se vislumbre alguém no horizonte, quer seja um grupo de mulheres carregando elegantemente potes e outros volumes sobre a cabeça, quer sejam as recorrentes figuras verticais que, de costas voltadas para o mundo, regam os campos e urinam para os esgotos correndo, como rios, a céu aberto.
Há silêncio no vagão. Talvez ainda estejam todos a dormir. Ou todos acordados sem quererem mexer-se. Aproveito o momento de tréguas matinais, antes de o caos diurno começar, e tento incitar a sensação própria dos dias de aniversário. Estranhamente, não a encontro. Pode ser que a excitação da festa seja, afinal, composta de bolos e canções e postais e velas por apagar. Faço anos, mas pouco importa, por estar em terra de ninguém. Por estar de passagem, estando rodeada de pessoas que nem sabem pronunciar o meu nome. Começo a sentir um movimento no beliche de cima, ao mesmo tempo que o som de bocejos vem do lado oposto do compartimento. Pouco a pouco, os vizinhos de carruagem começam a correr as cortinas grossas, e a luz ocupa o espaço apertado. No chão, acumula-se cada vez mais sujidade: cabelos e copos de café amassados. Mas não se está mal: todo o viajante aprende que critério de higiene é coisa mutável.
Quis o destino colocar-nos no meio de uma família numerosa, conceito que, num país com com mais de um bilião, ganha outros contornos. Mulheres de um lado, crianças no meio, homens do outro. Quando aqui cheguei de bilhete na mão, e lhes fiz notar com gestos esforçados que as malas deles estavam a ocupar o meu lugar, responderam-me sorridentes: wait, wait. E eis que chega um rapazinho com a minha idade e uma expressão orgulhosa do seu inglês. Negociámos o meu lugar. Primeira proposta: que trocasse de carruagem. Recusei. E se passar para o compartimento da ponta? Ponderei. Tudo bem, mas não quero ficar no beliche de cima. Como queira, menina. E se ficar na cama de baixo, à janela? Assim foi.
De tempos a tempos, uma das mulheres trazia um par de pratos de papel com comida. A primeira refeição era leve: uma mistura de amêndoas, caju, pistachio e uva-passa. Depois o idli, um pãozinho descorado, leve e azedo, feito de farinha de arroz e lentilha, que ensopavam ora num molho branco, ora num vermelho. Antes do meio-dia, chegavam as samosas e, ao almoço, em quantidades generosas, arroz amarelado e vegetais fritos que me traziam à memória os nossos peixinhos da horta. Em vez de garfos, o roti, aquilo a que chamamos chapati, para juntar montinhos de comida que levavam à boca em movimentos rápidos. Espantavam-me todas as preparações que traziam. Imaginava as mulheres a trabalhar na cozinha até altas horas da noite na véspera. As mãos a estender e a enrolar a massa, a pôr e retirar com rapidez o papadam antes que se queime; os olhos habituados às malaguetas que fermentam morosamente em frascos fechados.
Desejei estar na cozinha saturada de cheiro a óleo e especiarias agressivas, e ter acesso a todos os segredos do corpus de tal herança matriarcal. Para sobremesa, fizeram circular naquela manhã pratinhos menores com bolos secos; ligaram à tomada um fervedor elétrico e beberam chá. Ofereceram-me um bolinho que aceitei com timidez. Ali estava. Desprovido de recheio achocolatado e de chantilly, ainda assim: um bolo de aniversário.
Carolina Andrade
1- O conceito
A carvoíça é o estar a meio das coisas. Já não é lenha mas ainda o é porque já o foi. Ainda não é cinza mas será este o propósito. É como uma vida interrompida, uma pausa, um suspense… mas que não consegue mudar o fim inicialmente definido. Poderíamos deixar a lenha arder até se tornar cinza, mas deixamos a lenha arder até se tornar carvão, antes de se tornar cinza… para quê? Para ser vendida ou utilizada num novo fogo que termina o processo: o carvão, finalmente, transforma-se em cinza. É como se alguém fosse destinado a morrer e, tendo o homicídio falhado o propósito e tendo a vítima conseguido escapar, o homicida a encontrasse novamente e concretizasse o primordial objetivo.
2- Alvertino
Alvertino era um crente. Um crente que, por muito amar a liberdade de que com tamanha vaidade se gabava, escolheu praticar ações reprováveis segundo o código moral da sociedade rural em que vivia. E, como acontece com todas as criaturas viventes, morreu. Todos sabemos qual é o processo. Todos conhecemos cada passo. Os desenhos animados têm nisto a principal função. Todos sabemos que, quando um homem morre, a alma viaja por uma espécie de túnel escuro. Na verdade, um espectador exterior só é capaz de ver o corpo e a alma num determinado ponto de um gráfico cartesiano e, depois, noutro ponto, já só a alma. Mas nós, que conhecemos os bastidores dos teletransportes de almas, sabemos da existência daquele túnel. E naquele túnel, enquanto a alma viaja para o lugar que lhe é devido, a consciência, emanando da alma, pensa.
A consciência do senhor Alvertino também ali pensou. Pensou que, afinal, o lugar para onde as almas vão não é assim tão mau como anunciado pelo padre Agelido. É verdade que é um espaço negro, mas isto não é muito assustador, porque também se atravessam semelhantes na Terra. É verdade. Acontece muitas vezes confundir o caminho com a chegada. Acho que foi o que aconteceu ao senhor Alvertino, que pensou: afinal é isto! Mas nós, que vemos de cima, já sabíamos o que ia acontecer. Era inevitável, senhor Alvertino!
Vermelho! Vermelho! Vermelho! Vermelho! Cinza.
Luís Ramos
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